Da Conectas
O Brasil perdeu hoje a chance de prestar contas sobre a apuração de mais de 200 casos de abuso cometidos pelas forças policiais na repressão aos protestos que ocorrem no país desde junho de 2013. Em mais de uma hora de audiência temática na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA), em Washington, o governo desviou o assunto, ignorou perguntas e fez propaganda de medidas burocráticas, sem convencer peticionários e membros da Comissão.
Assista o vídeo da audiência
Embora as 5 organizações presentes, entre elas a Conectas, tenham apresentado vídeos e casos concretos de agressões, detenções ilegais, espancamentos, mutilações e outras violações de direitos nos protestos, os representantes do governo centraram suas intervenções em três aspectos pouco relacionados com o assunto: a existência de um mecanismo de prevenção da tortura, o fim dos autos de resistência e os dispositivos da Constituição de 1988 que reconhecem, na teoria, o direito a manifestação.
A audiência foi realizada a pedido de 9 organizações de direitos humanos, entre elas o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.
“Foi uma vergonha para o Brasil. Dar respostas vazias às graves e concretas violações que continuam acontecendo nas ruas é o reflexo preciso de uma política surda, que nega informações sobre os procedimentos da polícia, esconde o andamento de inquéritos administrativos e não reconhece as próprias deficiências”, afirmou Lucia Nader, diretora executiva da Conectas. “É impossível avançar no debate sobre direitos com um interlocutor que desconversa e mostra desdém quando confrontado com a violência da realidade.”
Carlos Antonio da Rocha Paranhos, subsecretário-geral político I do Ministério das Relações Exteriores, representante do governo brasileiro na audiência, deixou sem respostas as 12 recomendações feitas pelos peticionários (o dossiê entregue pelas entidades à OEA contém, ao todo, 25 propostas) e não esclareceu por que, apesar dos limites impostos pelo pacto federativo, nenhum policial ou autoridade foi investigado ou responsabilizado por violações cometidas contra manifestantes, jornalistas e advogados durante os protestos.
“Ficou muito claro para os comissionados e para os presentes que o Estado brasileiro continua distante das demandas da sociedade civil e que não há comprometimento com a apuração e punição dos abusos polícias e muito menos uma vontade política de frear o processo de criminalização dos protestos e dos manifestantes. É importante que a CIDH cobre respostas mais satisfatórios do Estado brasileiro”, disse o coordenador de Justiça da Conectas, Rafael Custódio, que esteve na audiência em Washington.
Veja as 12 recomendações feitas pelos peticionários durante a reunião:
1. seja imediatamente vedada a imposição de condições ou limites de tempo e lugar às reuniões e manifestações públicas, exceto aquelas limitações constantes do art. 5º, XVI, da Constituição da República Federativa do Brasil.
2. que todo o material de som e imagem captado pela polícia durante os protestos seja disponibilizado na íntegra, sem cortes ou edições, para consulta por qualquer indivíduo ou organização da sociedade civil;
3. seja imediatamente determinado aos agentes das forças de segurança que não vedem nem impeçam qualquer cidadão de captar imagem e som de seus agentes em atuação, sob pena de apuração de responsabilidade na esfera administrativa e criminal
4. seja imediatamente proibido o porte e uso de arma de fogo, por policiais atuando no acompanhamento de manifestações; e que o uso de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, spray de pimenta e correlatos só poderá ser determinado pelo comandante da operação, excluindo a possibilidade de seu uso em pessoas confinadas em uma área ou de forma a poder causar danos permanentes. Ademais, estes armamentos menos letais deveriam ser utilizados, em último caso, frente a iminente risco à integridade física dos manifestantes e transeuntes; a utilização dos mesmos deve seguir o binômio necessidade-proporcionalidade, evitando ao máximo ações repressivas que causem danos físicos aos envolvidos, começando sempre pelo diálogo com os envolvidos na geração do possível riscos e esgotando progressivamente as abordagens menos danosas;
5. que todos os policiais devam estar devidamente identificados nominalmente, de forma visível à distância e clara, como por exemplo, nos capacetes dos mesmos; caso ocorra a falta de identificação de forma generalizada, o comando da operação deve ser responsabilizado e, sendo este informado da falta de identificação de agente individual, deve agir prontamente, também pena de responsabilização por negligência;
6. seja fornecida capacitação técnica a todos os policiais militares que atuem em função ostensiva e/ou repressiva e, emergencialmente, aos que atuam em policiamento de manifestações públicas, de acordo com a normativa elaborada (conforme o Aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sesões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000 item anterior), para o fim de prepará-los para tais situações, de modo a que possam agir para o fim de garantir a realização da manifestação, garantindo-se a possibilidade de participação das entidades mencionadas no item (9) como observadoras;
7. seja produzido ato normativo vinculante definindo parâmetros de atuação da Polícia Militar dos policiais brasileiros, de acordo com as orientações técnicas retro mencionadas, dando-se oportunidade de análise prévia do ato pela Defensoria Pública dos Estados, Ministério Público, Organizações Não Governamentais com atuação em direitos humanos e demais interessados, realizando-se audiências públicas em todos os estados brasileiros; este ato deve prever mecanismos de monitoramento da atuação policial e responsabilização dos comandantes das forças policiais e agentes políticos,
8. que o governo brasileiro posicione-se em relação a uma nova arquitetura do sistema de segurança pública, baseado nos direitos humanos.
9. a responsabilização de agentes estatais por abusos cometidos a partir da criação de órgãos independentes e autônomos de fiscalização e monitoramento da Segurança Pública;
10. havendo detenção de manifestantes, que estes sejam imediatamente levados à delegacia mais próxima do local da ocorrência; que seja garantida a presença de advogados ou defensores públicos para acompanhar os atos policiais, incluindo revista de manifestantes e oitivas em sede policial, garantindo a ampla defesa dos manifestantes; que seja vetada a prática de prisões para averiguação, ilegais perante a normativa interna e internacional; que se suprima a prática das oitivas informais quando da detenção de manifestantes;
11. em caso de detenção de adolescentes ou crianças, que os mesmos sejam levados para delegacias especializadas, ou, pelo menos, mantidos separados dos adultos como consta no artigo 26.3 das Regras de Beijing, as quais o Brasil é signatário;
12. sejam instaladas câmaras de justiça restaurativa nos casos de violência policial; a ampliação de esferas de diálogo entre o poder público, os movimentos sociais e os próprios manifestantes.