E lá se foram 43 anos até que um fio de Justiça começasse a desvendar a morte do jornalista e militante comunista Mário Alves. Talvez até por este longo período de espera, Lúcia Caldas, filha do ex-diretor do jornal do PCB Voz Operária, editado no Rio, classifica como “uma surpresa boa” a notícia de que o Ministério Público Federal no Rio denunciou quatro oficiais e um ex-inspetor civil pelo desaparecimento do jornalista, conforme revelado pelo O Globo.
“Considero um passo muito importante, uma vitória de muita luta”, afirma Lúcia ao site do Sindicato dos Jornalistas. Essa luta começou com sua mãe, Dilma Borges Vieira, que em janeiro de 1970 saiu para procurar seu marido e, diante das ameaças dos militares, deixou um recado sucinto para a filha: “Fica em casa porque alguém tem que sobrar para contar a história.”
Mário Alves, que também editou os periódicos Momento e Novos Rumos, foi torturado e morto no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.
Na entrevista a seguir, a filha do jornalista, hoje aposentada e com 65 anos, lembra a trajetória de busca por Justiça e lamenta sobre o curto período de trabalho previsto para a Comissão Nacional da Verdade: “Não é em 15 minutos que vai se expor tudo.”
O processo do Ministério Público Federal, que solicita à Justiça a responsabilização de militares pelo desaparecimento de seu pai, deu novo ânimo na busca por esclarecimentos?
Foi uma surpresa boa. Considero muito importante, uma vitória de muita luta. Eu tenho esperança que vá adiante, que a denuncia seja acatada pela Justiça. Vamos esperar que isso resulte em mais verdade, mais justiça, não só para o meu pai. Espero que essa denúncia abra precedente para os outros atingidos, que são muitos.
A denúncia do MPF é um grande avanço ou um primeiro passo?
A investigação chegou a alguns pontos (da tortura e morte de Mário Alves), mas sabemos que há muito mais. A responsabilidade tem outro alcance. Há mais responsáveis, nós sabemos. É uma luta longa ainda. Mas dá esperança: agora são ações concretas e não só os gemidos de dor dos atingidos. O objetivo é sempre, junto com outros familiares de desaparecidos políticos e torturados, criar a consciência antitortura, para que ela não aconteça mais.
A Comissão Nacional da Verdade foi instituída oficialmente em maio de 2012 e terá o prazo de dois anos – que pode ser prorrogado por mais dois – para apresentar uma resposta ao Brasil sobre os desaparecidos políticos. Na sua avaliação, essa comissão vai cumprir um papel significativo para elucidar os crimes da ditadura?
É um passo. Cabe a nós insistir para que a comissão seja prorrogada, ampliada. Enfim, trabalhe permanentemente. Essas coisas não podem ser uma vitrine do tipo ‘ah, agora estamos abrindo tal janela’. Não é em 15 minutos que vai se expor tudo. Não tem como você se conciliar com um passado oculto. Ainda há muito por fazer e muito já deixou de ser feito. É importante também criar a consciência contra a tortura para que ela acabe, porque ainda não acabou: jovens são assassinados e trabalhadores torturados. Não pode existir violência institucionalizada. E foi na época da ditadura civil-militar que se institucionalizou essa violência.
O que aconteceu em sua casa, com sua família, após o desaparecimento de seu pai, em janeiro de 1970?
Minha mãe tomou a frente da busca pelo meu pai, ela dizia que eu tinha que sobrar para contar a história. Eu a acompanhava, mas não tanto. Minha mãe foi interrogada pelos militares, sofreu ameaças. Eu era jovem, tinha 21 anos, e fiquei muito perturbada. Mas não deixei de participar dos movimentos, comparecia a reuniões de mães que buscavam ajuda dos advogados, íamos a presídios, hospitais e cemitérios. Minha mãe adoeceu e fui tomando as rédeas deste trabalho (Dilma Borges Vieira faleceu em 1985, com 66 anos de idade, de enfisema pulmonar agravado, lembra Lúcia Caldas, pelo longo pesar e pela busca do corpo de seu marido).
Como era o jornalista Mário Alves no convívio com a família?
Ele era uma pessoa muito coerente. E era assim em casa sempre, com minha mãe, comigo. Ele traduzia bem o que pregava. Era uma pessoa alegre, democrática e otimista. Um revolucionário autêntico, que mete a cara na boca do canhão. Mas nada disso era por irresponsabilidade, claro.
Vocês moraram em diferentes lugares do Rio de Janeiro em função da clandestinidade.
Meu pai não ganhava dinheiro com jornalismo, era voluntário. Vivíamos humildemente, nunca tivemos carros por exemplo. Eu nasci na ilegalidade do PCB, em 1947. Moramos em diversos lugares, em Quintino Bocaiúva, no subúrbio… Depois que ele foi assassinado minha mãe e eu continuamos nos mudando. Morei em mais de 40 lugares. Cheguei a morar separada de minha mãe por um tempo porque ela fazia uma busca intensa atrás de notícias de meu pai e queria que eu me resguardasse.
Quem foi: o jornalista Mário Alves nasceu na cidade de Sento Sé, no Norte da Bahia, e veio para o Rio de Janeiro no final da década de 1940. Além de editor dos periódicos Novos Rumos, Voz Operária e do baiano Momento, Alves foi também dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Deixou a sigla e fundou, junto com Carlos Marighella, em 1968, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Alves foi preso pelo Exército no dia 16 de janeiro de 1970 e levado ao Doi-Codi, onde foi torturado até a morte. O Exército chegou a dizer para Dilma que seu marido estava em viagem a Cuba.
Aqui página do jornal Voz Operária de 7 de fevereiro de 1959, com o nome de Mário Alves em destaque no expediente.
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