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quinta-feira, novembro 21, 2024
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Ykenga, um sociólogo cartunista

Parece mentira, mas infelizmente não é. No dia 1º de abril de 2024, amigos de diversas praias receberam o triste informe de Louana Costa que seu pai Bonifácio Rodrigues de Mattos, nosso eterno Ykenga, teria voltado para casa neste dia. O infarto ceifou sua vida. Nossas despedidas ocorrem nesta quarta-feira, 03/04, às 15h no Cemitério Parque da Paz, no Pacheco, em São Gonçalo.

Falemos do nosso querido que eu, particularmente, chamava de “comédia” porque Ykenga é um ser incrível, docemente sarcástico. A começar pela data de nascimento, pois é… 14 de maio (de 1952), isso nos remete aos grandes debates sobre o pós-Abolição. Uma crítica agridoce e bem fundamentada de nosso querido é seu livro Casa Grande & Sem Sala, que traz a trajetória dos negros no Brasil, desde a época do “descobrimento” até a atualidade.

O pseudônimo Ykenga, segundo o belo, veio de sua avó africana, que assim chamava seu netinho que devia ser um garotinho arretado que, imagino eu, gostava de desenhar, de ver detalhes, irrequieto, risonho, muito vivo, e … falador… Acredito que muitas das críticas que se refletiam em seu traço fino tinham a ver com suas experiências pessoais de menino negro num universo de invisibilidades. Mas, graças aos mentores espirituais, Ykenga dava vários nós em pingos d’água para evidenciar que nossa fala é potente.

Sua estreia na carreira foi iniciada nos anos 1970 no semanário O Pasquim e passou por vários jornais, entre eles O Dia, Última Hora, Jornal do Commercio, O Fluminense, Extra, Libèracion da Suécia, La Juventud do Uruguai, Starchel da Bulgária, dentre outros. Ilustrou livros com textos de Martinho da Vila, Novos Talentos, da ABL, o Catálogo do salão expôs no YomiuryShimbum-Japão, Angulenie-França, salão Internacional de Caricatura do Canadá, fez uma individual no Museu da Imagem e do Som-RJ, na Casa do Humor e na Sátira de Gabrow-Bulgária, Internacional de Caricatura de Montreal (Canadá) e publicou trabalhos autorais.

 Carioca e residente na cidade de São Gonçalo, onde criou sua família, Ykenga usava o traço para fazer críticas à realidade de violações contra a pessoa negra. Críticas, por sinal, bem fundamentadas pois este desenhista técnico tinha formação em Sociologia.

Levou suas armas – charges, quadrinhos – para as trincheiras do Movimento Negro, decodificando para crianças e idosos as razões pelas quais pessoas como ele devotavam sua vida para a luta contra o racismo cotidiano. Com sagacidade e traço fantástico e singular expunha de forma irônica a tal democracia racial que coloca um X nas costas e testa de gente preta. Válido ressaltar as palestras que Ykenga fez em eventos organizados por entidades negras, uma delas foi o Grupo de Trabalhos André Rebouças, lá pelos idos de 1990, onde defendia que a charge, a caricatura, o humor gráfico eram fortes aliados para apresentar à sociedade o que era a luta antirracista.

Associativista por natureza, ele teve ativa atuação na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e foi membro da Academia Brasileira da Cachaça – me perdoem, essa eu não conhecia, mas com certeza era um membro digno da categoria. Grande Ykenga, figuraça que amava um bom bate-papo, uma geladinha e, claro, ao menos para mim, torcer pelo Flamengo.

Caricaturista e chargista, Ykenga recebeu inúmeras premiações, como o Troféu Angelo Agostini, na categoria Mestres do Quadrinho Nacional, pela Associação de Quadrinistas e Caricaturas do Estado de São Paulo. Matéria em seu site <https:ykenga.com.br>, sua premiação foi pelo conjunto da obra, que não é pouca coisa, diga-se de passagem. “Foi uma imensa surpresa, pois não estou habituado a premiação. Sou um chargista militante, meu maior prêmio é quando uma charge minha e utilizada numa passeata ou afins”.

Impossível viajar na vida de Ykenga sem buscar minhas próprias memórias. Tive a grata satisfação de reencontrar Ykenga representando outra faceta que eu não conhecia. Ele estava lotado em um CIEP na cidade de São Gonçalo, RJ, à frente da Sala de Leitura. Foi uma experiência ótima, pois na época, acho que em 2014 ou 2015, eu produzia conteúdos para uma revista de educação. E consegui “vender” uma pauta que rendeu muito. O professor Bonifácio (Ykenga) estava envolvido na organização de um grande projeto pedagógico. Ele queria fazer o lançamento do livro O nascimento do Samba, de Martinho da Vila e ilustrações de Ykenga. O Samba foi o grande tema do projeto, perpassando por várias abordagens. Um dos professores que estavam engajados neste projeto foi o nosso querido arte-educador e ativista Edeejô Ewaré, que também era lotado neste CIEP. Foi muito bacana, entre falas e atividades diversas, como exposição da produção dos estudantes da unidade escolar, uma fila imensa da comunidade escolar para fazer muitas fotos com os ilustres autores na tarde de autógrafo. Guardo o meu exemplar a sete mil chaves.

Aos familiares, meus sinceros sentimentos.

Aos amigos de longa data e de ralações, meus sinceros sentimentos.

Ykenga já faz falta, mas sei que em algum momento, que só o Sr. Tempo sabe, nos encontraremos.

Siga sua luz, amigo. Depois, quando puder, olhe por nós.

Sandra Martins, jornalista membro da Cojira-Rio

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