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quarta-feira, dezembro 18, 2024
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Reflexões sobre “Ainda Estou Aqui” e o Jornalismo

Márcio Ferreira

Assistir ao filme “Ainda Estou Aqui” é, antes de tudo, um mergulho profundo na memória histórica do Brasil e um convite a refletir sobre o papel da imprensa na construção — ou omissão — de narrativas. Para quem atua no jornalismo, como eu, a obra vai além de sua dramaturgia e se torna uma oportunidade de questionar nosso próprio ofício, tanto em sua capacidade de ser testemunha ocular da história quanto em suas falhas em momentos cruciais.

O filme aborda a prisão, o desaparecimento e a morte de Rubens Paiva, deputado federal e militante da democracia, vítima do regime militar instaurado em 1964. Em várias passagens, o jornalismo é colocado em destaque, seja por sua ausência, quando a prisão de Paiva não foi noticiada pela imprensa brasileira, seja por sua presença estratégica, como nas tentativas de aliados de levar informações à imprensa estrangeira.

A relação entre o jornalismo e o poder é exposta de forma crua. Quando a filha de Rubens Paiva questiona por que sua mãe, Eunice, daria uma entrevista a uma “revista vendida”, ela aponta para a cumplicidade de parte da imprensa com o regime militar. Essa cumplicidade não é mera ficção: veículos como O Globo e a Folha de São Paulo apoiaram o golpe de 1964. Décadas depois, alguns desses jornais reconheceram publicamente esse apoio como um erro. Em 2013, O Globo publicou um editorial admitindo que seu apoio ao golpe foi equivocado, afirmando que “à luz da História, esse apoio foi um erro”. A Folha de São Paulo, embora tenha reconhecido seu apoio ao regime, gerou controvérsia ao utilizar o termo “ditabranda” para se referir à ditadura, o que foi amplamente criticado.

Outra cena marcante ocorre quando Eunice, já como advogada, recebe a certidão de óbito do marido, décadas após o crime. Um jornalista pergunta: “Não há coisas mais importantes para serem resolvidas no Brasil do que ficar revendo o passado?”. A pergunta, de aparência banal, carrega a insensibilidade e a tentativa de apagar a importância da memória e da verdade.

O filme também utiliza o jornalismo como fio narrativo, mostrando recortes de jornais que documentam a prisão e a morte de Rubens Paiva. Esses registros, aparentemente objetivos, revelam a força do jornalismo como testemunho, ainda que limitado pela censura da época. Até mesmo a luta de Eunice contra o Alzheimer, na fase final de sua vida, é tocada pela imprensa: sua memória volta brevemente à realidade ao ouvir o nome de Rubens Paiva em uma reportagem televisiva de 2014.

O jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice, é uma peça central nessa história. Sua atuação na imprensa e na literatura não apenas mantém viva a memória do pai, mas também reforça a importância de um jornalismo comprometido com a verdade e com a democracia.

Ainda Estou Aqui vai além de um relato pessoal e se estabelece como um importante registro histórico. Ele nos lembra que o jornalismo não é apenas um cronista passivo dos fatos; é também um ator político, cujas escolhas — sejam elas de denúncia, omissão ou cumplicidade — moldam a história.

Não há jornalismo sem história, assim como não há história sem jornalismo. O filme é um alerta poderoso de que, sem uma imprensa livre, a democracia se fragiliza. E se hoje “ainda estamos aqui”, é porque seguimos defendendo a memória, a verdade e os pilares do Estado Democrático de Direito.

O filme e a imprensa, em sua melhor forma, nos lembram que “ditadura nunca mais” é um compromisso que deve ser renovado continuamente. Afinal, sem jornalismo, não há democracia; sem memória, não há futuro.

Marcio Ferreira é jornalista, Mestre em Sociologia, Doutorando e Sociologia Política pelo IUPERJ/UCAM e membro da Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Munícipio do Rio de Janeiro

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