Por Bárbara Aires*
Essa foto que trago para vocês foi do dia da formatura simbólica do PreparaNem. Simbólica porque não temos, ainda, certificado MEC.
Desculpem, mas serei obrigada a contestar esse “simbólica”. A formatura do PreparaNem, veio “certificar” minha trajetória de vida, que foi o que realmente me ensinou e me embasou, enquanto pessoa trans, negada e rejeitada em todos os espaços possíveis e imagináveis. Não somos aceitas nas escolas e faculdades. Sim, podemos entrar, mas o problema e a dificuldade está em se manter. Nome social desrespeitado, uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero negado, perseguição, chacota, exposição… Evasão.
Trans, e sem qualificação, o mercado formal escancara a transfobia nas nossas caras.” A vaga já foi preenchida, você não tem o perfil pra vaga, seu currículo é muito bom pra essa vaga”, até “a empresa não quer ver a marca associada a uma funcionária travesti”, no masculino óbvio, eu ouvi.
Os ditos “programas sociais” para travestis e transexuais, também não são para todas. Eles escolhem determinados perfis, e eu não sou desse perfil. Ouvi que o projeto não era pra mim, que eu não precisava, que meu caso era outro… Ué, sou trans, desempregada, precisando terminar os estudos, querendo sair da prostituição, e o projeto, que ajuda a terminar os estudos e encaminha pra um estágio com possibilidade de contratação, não é pra mim? Contas continuam a chegar, casa pra pagar, família pressionando pra ajudar a mãe, então, sigamos no que a vida nos oferece, a esquina.
Tive dois maravilhosos anos contratada da Globo, os melhores da minha vida pra mim, com resultados prestados, conversas para efetivação e promoção, mas resolvem mudar meu chefe e o novo não me chama, mais um sonho vai pelo ralo…
Vida que segue e, de repente, descubro o PreparaNem, idealizado pela travesti que os representantes governamentais não querem ver nem pintada e execram para todos. Resolvi ver no que daria o projeto, afinal, já estava inscrita no ENEM e economizar o do cursinho seria uma boa a essa altura.
Voluntários e professores maravilhosos, mestres, doutores, formandos, bagagem de vida, de todos os tipos e formas. Assim seguimos 6 meses. Meu sonho era PUC, não deu. ProUni, recorte de nota menor. Vamos a mais um ano de estudos e levando a vida como dá. Eis então que o Prepara surpreende mais uma vez e aparece a oportunidade de fazer o vestibular da FACHA. “Quero, lógico.” Soube na quinta, 28, que a prova seria sábado, 30. Corre pra pagar a inscrição, e seja o que Deus quiser.
Sem saber que prestaria outro vestibular, sem estudar especificamente para este, eis que a pessoa, EU, passo… Alegria, choro, emoção!!!
Graças aos profes, colabores, voluntáries e alunes do PreparaNem que consegui esse feito!!!
Então, pra mim, a formatura do PreparaNem foi uma formatura real, válida, e que veio sacramentar que passei na primeira turma do projeto. Agora, vou rumo a faculdade.
Jornalismo, aí vou eu!!!
Por que Jornalismo?
Ainda criança, pura e inocente, achava que ia crescer, “virar mulher”, casar, ter filhos e cuidar da casa. Até então, minhas únicas referências do “ser mulher”.
Cresci, na adolescência conheci travestis, e foi então que comecei a saber que existiam travestis e transexuais. Foi quando me deu o ‘estalo’ de que poderia ser “assim”, igual elas.
Meu primeiro questionamento pessoal, foi justamente a questão dos estudos e o trabalho, pois só conheci travestis prostitutas. Não conheci nenhuma com outra profissão, isso em meados dos anos 90. Lá em março de 2003, poucos meses após “a Bárbara” nascer, descobri que era esse o meu destino, também.
Para todos os jovens em época de pré vestibular, é difícil escolher uma profissão, e para nós trans, ainda temos a dificuldade de não se ter referências. Cadê as pessoas trans escritoras, atuando, medicando, operando, informando, advogando…? Julguei que seria profissional do sexo, querendo ou não, para sempre.
Já em 2008, incentivada por amigos, colegas e conhecidos, resolvi fazer curso de cabeleireira sob a alegação de que “essa área aceita viado fácil”. Não obtive sucesso. Descobri a militância.
Na luta por direitos humanos, principalmente os direitos básicos e fundamentais para travestis e transexuais, ganhei uma pequena projeção no meio ativista e fui parar na plateia do Amor e Sexo para explicar a “diferença” entre travestis e transexuais, em junho de 2011.
Minha participação rendeu um convite para integrar a equipe de produção, e em janeiro de 2012, entrei oficialmente para produção do Amor e Sexo, onde fiquei até dezembro de 2013. Foi a melhor experiência que me aconteceu.
Sempre me falaram que sou comunicativa, que sei me expressar, e que tenho facilidade com as palavras. Dizem que quando eu falo, fica fácil entender. Essa experiência profissional me deu o rumo que eu precisava, me mostrou que sou capaz e posso ter uma profissão!! Antes cogitei ser professora, veterinária, vendedora de loja.
Tudo isso aliado a maneira que a maioria das reportagens tratam a população de pessoas trans, na maioria travestis, decidi pelo Jornalismo por gostar da área, ter gostado de atuar como produtora de reportagem, e para fazer um jornalismo humanizado, respeitoso e sério.
O juramento dos jornalistas diz que o profissional vai ter compromisso com a informação, atuando dentro dos princípios universais, da justiça e democracia. Diz ainda, que é dever do profissional buscar o aprimoramento das relações humanas, visando um futuro mais digno e justo para todos os brasileiros. Sinceramente? Não é o que vejo na maioria dos casos. Tirando uma meia dúzia de simpatizantes e apoiadores a causa, a maioria se preocupa apenas com a ortografia, gramática e concordância verbal, e esquece o ser humano.
A maioria só cita travestis quando são presas ou arrumam brigas e confusão. Como se nenhum outro grupo de pessoas fizesse também, e como se travestis não fizessem outras atividades. Ou citam mortes por questões marginalizadas, drogas, roubo, briga, doença. Fazem questão de citar nome de registro, isso quando nem usam nome social. É uma espetaculização do ser travesti e transexual, exposições vexatórias e com tom de deboche. Brincadeiras do tipo, “é ele ou ela?, menino ou menina?’, entre outros.
São raras as matérias que divulgam pessoas trans artistas em cartaz, pessoas trans no mercado formal, pessoas trans nas profissões modelo da sociedade. Qual trans advogada famosa nós temos? Médica? Política? Engenheira? Arquiteta? Economista?
Não venham me dizer que é nossa culpa, faça uma contextualização histórica e vamos conversar sobre. E é por essa visibilidade, por um jornalismo inclusivo e respeitoso para com todos, de verdade, que eu quero ser jornalista!!!
*Bárbara é integrante do PreparaNem, curso preparatório para o vestibular destinado a transsexuais e travestis