Bruno Quintella
Artigo publicado originalmente em ‘O Globo’
No dia em que o matariam, Tim Lopes levantou às cinco e meia da manhã para pegar o ônibus que o levaria ao trabalho. Tinha sonhado que viajava para Angola, lugar que sempre quis conhecer, e por um instante foi feliz no sonho. Mas, ao acordar, já sabia que teria um dia longo, embora não pudesse imaginar, nem em sonho, que aquele plantão nunca terminaria.
A última vez em que nos falamos foi na véspera, um sábado. Conversamos no banco do jardim da casa de minha mãe. Foi deixar o cheque do cursinho pré-vestibular, e combinamos alguma coisa sobre meu aniversário, dali a alguns dias. Eu ainda não sabia, mas comemorar a data em que nasci sem ter o meu pai por perto passaria a ser uma eterna rotina a partir daquele 2002, quando ele foi morto enquanto fazia o seu trabalho.
O jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez tem um pensamento que sempre me fez refletir sobre a profissão: “Em geral, um escritor só escreve um único livro, embora esse livro apareça em muitos tomos, com títulos diversos.” As reportagens de Tim Lopes formaram os muitos volumes do “único livro” que ele escreveu como jornalista: o de contundentes denúncias de temas sociais cíclicos, pois sua percepção era de que os problemas das pessoas marginalizadas e da cidade onde (sobre) vivem nunca eram resolvidos ao longo dos anos.
Talvez por esse motivo, as suas pautas, mesmo “repetidas” em um primeiro momento, traziam novos olhares (e novas denúncias) sobre os mesmos assuntos: o tratamento desumano dado a dependentes químicos pobres em clínicas de reabilitação, a vida dos moradores de rua, as péssimas condições de trabalho de operários da construção civil, a superlotação dos presídios, a opressão do tráfico de drogas sobre moradores das favelas dominadas por facções criminosas, os arrastões nas praias cariocas. Tim não apenas observava o excluído social. Ele encarnava o oprimido porque vivia o drama na própria pele para só então contar a sua história do outro.
Exatos 15 anos após o assassinato de Tim Lopes — capturado, torturado e queimado vivo ao ser descoberto por traficantes da Vila Cruzeiro durante mais uma reportagem de denúncia —, a região do Alemão e da Penha (onde foi morto) produziu vozes independentes. Se antes o medo fazia com que os moradores precisassem sair da favela para alcançar um sonho, hoje muitos deles querem realizá-lo sem deixar a comunidade na qual vivem. Coletivos independentes, como a “Voz das comunidades”, nasceram há alguns anos e representam parte desse movimento tão sonhado por Tim ao longo de sua carreira, que era conscientizar a juventude sobre as questões sociais. Porém, agora, moradores da mesma Vila Cruzeiro e de tantas outras favelas de diferentes regiões voltam a pedir socorro por causa dos mesmos males que parecem compor o único livro de suas vidas: violência, descaso, abandono.
Será que ainda somos capazes, como sociedade, de escrever com eles ou mesmo por eles as histórias que precisam ser escritas? Onde está Tim Lopes?
Bruno Quintella é jornalista e diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro