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sexta-feira, novembro 22, 2024
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A vida de Tim Lopes

por Bruno Quintella
publicado originalmente na edição 35 do Lidão, informativo impresso do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio
Tim Lopes foi assassinado há dez anos. Ele era meu pai. Então, corrijo: meu pai foi assassinado há dez anos. Durante todo esse tempo, a morte e suas adjacências me atormentaram nos dias de junho, data de sua morte e meu nascimento. Nascimento. É o nosso sobrenome. O oposto da morte. Há quem pense que a morte é o oposto da vida, mas é o nascimento que se opõe. Portanto, Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, meu pai, o Tim, foi assassinado há dez anos.
Na faculdade de Jornalismo, muitos não sabiam – nem poderiam – de quem eu era filho. Seis meses após sua morte, eu ingressava no mundo acadêmico ainda desorientado pela minha perda. Ouvia colegas dizendo que meu pai “rodou” porque “deu mole”, etc. Ainda era muito recente. As pessoas sempre falam besteiras sobre o que não sabem. E o que elas sabiam era como Tim Lopes havia sido morto. Mas não sabiam como Tim Lopes havia sido vivo.
Em 2004, nos corredores da TV Globo, o Guilherme Azevedo me encontrou e veio com a ideia de fazer uma homenagem ao meu pai. Seria um documentário, mas poderia ser um longa de ficção. Desconversei, ainda não queria remexer no que ainda não havia mexido, talvez porque não tivesse superado a morte de meu pai. E é difícil trabalhar onde seu pai trabalhou; onde eu buscava a mesada sempre de calças compridas para não ser barrado na portaria; onde eu havia visto pela primeira vez os rostos famosos da televisão e os rostos que não eram famosos da televisão, talvez apenas um, o único que me bastava, o do meu pai. Aquele sorriso solto e lento ao me ver entrar na redação. Não, eu ainda não poderia reencontrar meu pai dois anos depois de sua morte. A conversa seria retomada algumas vezes ao longo dos anos, mas em 2009 decidimos fazer um documentário sobre a vida do meu pai, que além de “jornalista-Tim Lopes-da-TV-Globo-morto-por-traficantes-de-drogas-no-Complexo-do-Alemão-em-junho-de-2002-quando-realizava-uma-matéria-sobre-a-exploração-sexual-em-bailes-funk-na-Vila-Cruzeiro”, era Arcanjo Antonino, filho de dona Maria e seu Argemiro. O filme que estamos fazendo é sobre esse homem.
Nos oito anos de profissão que completei recentemente, ouvi muitas histórias curiosas sobre meu pai. Pelo fato de ter seguido sua profissão, a esperança e a confiança do meu desponte na carreira eram latentes. “Tá no DNA, rapaz. Tá no sangue!”.
Sempre achei graça dessa cobrança, porque meu pai havia me desencorajado a me tornar advogado, quando cheguei a ensaiar uma tentativa de migrar para o Direito (aos 17, quando “soube” que Vinicius de Moraes, além de poeta, era diplomata). “Não quero puxar a brasa pra minha sardinha, não, irmãozinho, mas teu negócio é escrever, teu negócio é jornal.” Dois anos depois meu pai morreria. E eu não podia nem queria decepcioná-lo.
Fazer um filme sobre o próprio pai é expor sua humanidade e seu caráter, mas sem essencialismos. Entender que o Tim Lopes não era meu pai, mas que o meu pai era o Tim Lopes. Um homem de bem, um gaúcho, um carioca, um boêmio, um maratonista, um gaudério. Um homem. Pai. Repórter acima de tudo. Mas era humano.
E ao idolatrarmos quem admiramos, isso nos afasta, nos distancia da própria reverência. Meu pai não era dado a pompas, mas ao reconhecimento. Em vida. Flores em vida, diria Nelson Cavaquinho, quem meu pai adorava e pôde conhecer nos tempos de Mangueira.
Filmar na Vila Cruzeiro. Filmar na Favela da Grota. Nunca havia ido ao Complexo do Alemão nem da Penha, decidimos ir na semana que seriam completados dez anos de sua morte. Foram dois dias, às vésperas do dia 2.
No campo de futebol, onde meu pai foi morto, não havia ninguém. Sol forte. Era a primeira vez que entendia que meu pai havia mesmo morrido. Era o mesmo lugar que a televisão havia mostrado ao longo dos anos. E eu estava lá. Cheguei a procurar meu pai, não por lá, mas na memória, para que eu pudesse levá-lo vivo para aquele lugar silencioso e descampado. Pelo menos uma vez. O sol estava forte, mas me despedi de meu pai e fui embora. Exausto. Todos estávamos cansados, mas a equipe estava mais ainda, porque estavam preocupados comigo. No dia seguinte, na Vila Cruzeiro, o tempo nublado justificou a nossa recepção. Olhares desconfiados, pessoas se aglomerando pelos becos e janelas e um silêncio de vozes, mas um barulho de medo. Confesso que tive certo receio quando passamos pela rua onde acontecia o baile funk, onde Tim foi capturado. Um morador veio espontaneamente conversar conosco. Isso foi muito legal. Falou sobre a importância que a repercussão da morte de meu pai trouxe para o local. As autoridades finalmente haviam se mobilizado para, dez anos depois, atenderem o pedido da população dos complexos: recuperar a cidadania dos moradores dessas comunidades.
Quando estávamos no Rio Grande do Sul, onde meu pai nasceu, mais precisamente em Pelotas percebemos que durante as filmagens fizemos o caminho inverso da vida de Tim. Encontramos a morte para depois reencontrar a vida. O lugar onde nasceu. Justamente a ideia inicial que tivemos e decidimos trilhar. Sair da morte e retornar ao nascimento, sobrenome que herdei de meu pai. As raízes da família nos aproximam de nós mesmos e nos permitem seguir em frente. E era isso que meu pai gostaria que fizéssemos: celebrar a vida.

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