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Um mestre de ofício

Por João Batista de Abreu
publicado em 15/01/2013 na edição 729 do Observatório da Imprensa
Este texto não tem gancho. Talvez desobedeça às regras básicas do jornalismo, mas segue as normas da ética da cidadania. Fala de um repórter que marcou época, nos tempos em que os jornais compreendiam que ter cabelos brancos não era obstáculo para correr atrás de boas histórias.
José Gonçalves Fontes, carioca de Santa Teresa, nasceu em 1934 e morreu em 31 de julho de 2000. É um exemplo daquilo que se equilibra entre a ética do jornalista e a ética do cidadão, como ensinava o mestre Cláudio Abramo. Filho de um açougueiro, Fontes sonhava em ser jóquei. Começou a trabalhar como repórter aos 19 anos e, aos 24 (em 1968), ingressou no Jornal do Brasil,onde permaneceu por 30 anos.
Conquistou três prêmios Esso de Jornalismo e duas menções honrosas. Como repórter brilhante e eclético, cobriu praticamente tudo, desde matérias de crime (“Fera da Penha”) a tentativas de golpe militar (“Revolta de Aragarças”, em 1960).
Trabalho anônimo
Para quem ainda supõe que a ditadura militar só prejudicou os jornalistas militantes de grupos clandestinos de esquerda, a história de Fontes mostra o contrário. No final dos anos 1970, o repórter especial do JB ficou fora de pauta durante duas semanas para levantar a história de um grupo econômico do setor imobiliário. A reportagem dominical de duas páginas denunciava os negócios do grupo, citando o artifício imaginoso das apostas. De acordo com o apurado por Fontes, o empresário costumava apostar um carro zero quilômetro com o gerente do banco de que não conseguiria o empréstimo solicitado. Quando obtinha o empréstimo, pagava resignado a aposta.
Quando foi demitido, numa barca que Joaquim Campello – redator do JB e coautor do dicionário Aurélio – consagrou como “passaralho”, com direito até a verbete que circulou na redação, José Fontes foi sondado para ocupar uma vaga de chefia na Rádio Nacional (empresa pública), mas, segundo informações que circularam na época, seu nome teria sido vetado porque constava numa lista do Serviço Nacional de Informações (SNI), de jornalistas contrários ao regime militar. Naqueles tempos, os acusados tinham mais poder do que os jornalistas que denunciavam seus desmandos.
O exemplo de José Fontes é emblemático para mostrar que o trabalho do repórter é essencialmente anônimo e tende a cair no esquecimento. No máximo, fica no inconsciente coletivo. Mesmo sendo recordista de prêmios Esso.
Mais do que repórter, Fontes seguia ao pé da letra o que recomenda Cláudio Abramo. E aqui vai a apuração que comprova a afirmação.
“Anote tudo”
Nos anos 1970, quando nosso personagem chefiava a reportagem, o Jornal do Brasil produziu uma série de matérias sobre a adoção de crianças órfãs. O resultado foi surpreendente. Todas as crianças foram adotadas por leitores, numa prova da credibilidade e do espírito de solidariedade que o jornal despertava. Apenas uma criança não teria o mesmo destino. Pois José Fontes, pai de outras crianças, abandonou o papel de chefe de reportagem e se transmutou em leitor. Na semana seguinte, o menino estava em sua casa, como filho adotivo.
Nosso jóquei frustrado morreu sem conquistar o reconhecimento público, a não ser entre aqueles com quem trabalhara. Sabia como poucos dominar as rédeas da boa apuração. Embora nunca tenha sido professor, Fontes transformou-se num mestre de ofício, ensinando a algumas gerações as artimanhas da reportagem. Foi mestre sem ser professor.
Seguem-se algumas de suas frases:
>> “De ilusão e ilusionismo também se vive. Talvez por isso o repórter morra mais cedo do que profissionais de outros sonhos. É ele, quase sempre, por dever de ofício, a testemunha fiel dos sentidos. Ver, ouvir e refletir os fatos como eles realmente aconteceram.”
>> “Dizem por aí que quem cumpre pauta é músico. O bom repórter, porém, já acorda pautado pelo próprio inconsciente para a sinfonia inacabada das notícias.”
>> “Meu caro repórter: não confie na sua memória. Anote tudo.”
>> “Repórter sem fonte é repórter sem horizonte.”
>> “No jornalismo de hoje os sinais aritméticos têm o seguinte significado: o de menos, menor salário; o de mais, maior trabalho; o de multiplicação, problemas; e o de divisão, escassez de infraestrutura.”
João Batista de Abreu é jornalista e professor associado da Universidade Federal Fluminense.

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