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quarta-feira, maio 8, 2024
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A perda de um mestre: Audálio Dantas

Sandra Martins (*)

A manchete do obituário do último dia 30 de maio foi dedicada ao jornalista Audálio Dantas, que aos 88 anos deixou o Hospital Premier, em São Paulo, onde estava internado desde abril, para se encontrar com Olorum e amigos/as. Corpo e espírito estavam doentes. Em 2015 a descoberta do câncer de intestino; mas como na letra do funk, agora estava “tudo dominado”. Já o espírito, conforme o amigo Ricardo Kotscho, “morreu foi mesmo de tristeza, ao ver o que fizeram do seu país, pelo qual sempre foi muito apaixonado”.

Somente uma pessoa insensível não somatizaria as contínuas derrotas em prol de um país que já deveria ser nação há muito tempo, e que a cada má gestão – em todas as instâncias – aumenta os distanciamentos entre as castas. Audálio conhecia bem as danosas consequências desse desenho.

Conheci Audálio Dantas, em 2014, no Congresso Nacional dos Jornalistas em sua terra: Alagoas. Ele dividia o palco com Edson Cardoso. O então assessor especial da Secretaria de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial (SEPPIR) incitara a plateia a questioná-lo sobre o que lhe chamara a atenção naquela mulher favelada, Maria Carolina de Jesus, que dizia tudo escrever em um ‘livro’. Por que acreditar nela? Dantas parecia esperar pela pergunta. A partir da trajetória de seu encontro com a escritora, sinalizou questões como ética, responsabilidade, sensibilidade. Era disto que se tratava todo o congresso em si, com seus painéis paralelos para atender aos interesses das mais de quarenta delegações de jornalistas vindas de todas as regiões do país.

Nesse encontro realizado pelo sindicato alagoano, ocorreu o ENJIRA – I Encontro Nacional de Jornalistas pela Igualdade Racial, painel temático que reuniu jornalistas da rede Cojira/Núcleo e interessados no debate sobre o racismo na pauta e no cotidiano laboral. Os presentes perceberam as nuances do que Audálio nos transmitia, entendendo que mesmo não sendo um ativista do movimento negro, era antes de tudo um ativista dos Direitos Humanos, que é exatamente o que todos/todas nós somos e defendemos.

Ao escrever este texto, me vem a seguinte pergunta: Quantas Marias Carolinas de Jesus deixamos de ver no nosso cotidiano? Os Audálios Dantas nos ensinam que é preciso defender o que determina o nosso Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em especial, no que tange ao Artigo 6º, inciso I, de “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

Não à toa que o jornalista, mesmo antes da existência deste código de ética, mas sim imbuído de muita sensibilidade e vivência, pode em um dia comum de trabalho na “Folha da Manhã”, futura “Folha de São Paulo”, fazendo uma matéria na favela do Canindé, próximo do estádio da Portuguesa, conhecer Maria Carolina de Jesus. Ela escrevia o cotidiano da região em seus cadernos: pura etnografia, cuja narrativa, segundo o repórter, era “próxima da poesia”. O jornal bancou a publicação da série iniciada em 9 de maio de 1958, mais tarde transformada pela editora Francisco Alves no famoso livro “Quarto de Despejo”. Esse foi um daqueles momentos em que a bolha deixa uma fresta para que um dos de baixo possam passar, e as oportunidades devem ser agarradas com unhas e dentes. Foi o que fizeram.

Infelizmente, em geral, não é assim: o sabemos. E isso dói para ambos os lados. Pois acaba imperando anteparos com novas roupagens, como: aumento de quantitativo de pautas e redução de tempo para a sua produção; insegurança ambiental no exercício profissional; a autocensura; pouco espaço para pautas livres; visão etnocêntrica. Resumo: medos. Pois, em tempos de enxugamentos constantes nas redações, o mínimo de problemas levados à chefia dá uma “certa” garantia de manutenção do espaço laboral.

Tais questões integram o nosso debate cotidiano do qual Dantas discutia no campo sindical do qual era ligado visceralmente. Presidiu o sindicato estadual paulista (1975/1978) quando o DOI-CODI “suicida” o jornalista Vladimir Herzog em 1975. Audálio Dantas conduziu, junto com outros/outras personalidades, os protestos denunciando a farsa da versão oficial dos militares. Também presidiu a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e era do conselho consultivo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Na política partidária, em 1981, elegeu-se deputado federal pelo MDB, e, neste ano, ganha o Prêmio de Defesa dos Direitos Humanos da ONU por sua atuação em prol da defesa dos direitos humanos.

Audálio Dantas era casado com Vanira Kunck e tinha quatro filhos. Seu velório foi realizado na sede do sindicato dos jornalistas paulistas.
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Sandra Martins é jornalista, mestre em História Comparada/UFRJ e integrante da COJIRA-Rio (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro)

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