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quarta-feira, maio 8, 2024
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RUTH DE SOUZA – Diva na arte de representar

Um dia, lá pelos idos de fins de 1989, o fotógrafo Zezzynho de Andrade, irmão de muitas caminhadas, me convidara para participar da equipe de um jornal tablóide chamado Mergulho. Eu trabalhava no Jornal do Commercio como diagramadora. Não tinha experiência como repórter, mas encarei o desafio da pauta, que foi entrevistar um dos meus ícones: a atriz Ruth de Souza. Por Sandra Martins (*)
Foi uma excelente oportunidade para contribuir com a imprensa negra. A publicação saiu em janeiro de 1990. Entretanto, para nossa tristeza, não passou do primeiro número. Foi uma experiência incrível. Em especial, pelos grandes nomes reunidos no Conselho Editoria – Abdias Nascimento, Carlos Alberto Caó de Oliveira, Helena Theodoro, Helio Santos, Joel Rufino, Jorge Aparecido Monteiro, José Miguel, José Paixão e Beatriz Nascimento.
O interessante é que anos mais tarde, em pesquisas na coleção de Beatriz Nascimento, no Arquivo Nacional, sobre o Grupo de Trabalhos André Rebouças, que ela concebera e tema de minha dissertação de mestrado, descobri o jornal Mergulho. E, para minha surpresa, eu havia participado dele e tinha esquecido completamente. No tablóide, havia também um artigo de página inteira da própria Beatriz!!! Na época, não tinha dimensão da grandeza dessa intelectual, só sabia que era a “Professora e Historiadora Beatriz Nascimento”. Muita emoção.
Mas, enfim, qual a relação deste jornal e eu com a nossa querida Ruth de Souza, a grande dama da teledramaturgia, do teatro e do cinema brasileiros? Tudo!
Zezzynho disse que ele não queria que eu me restringisse a uma função. Justíssimo, pois eu o perturbei para que o nobre amigo me indicasse para um estágio em uma mídia negra – um dos meus sonhos. E a oportunidade veio com aquele jornal.
Porém o senhor Zezinho preparou outra grata surpresa para mim. A pauta era entrevistar uma personalidade da cultura brasileira. Gelei, mas tudo bem. Segundo meu “orientador” era manter a calma, o foco, lembrar das aulas na faculdade, manter a calma, pesquisar sobre a personagem e agendar uma data para o encontro.
Quando Zezzynho nominou a celebridade negra… uau… tremi, gelei, balancei. Pois, simplesmente, amava seu trabalho, sua postura, seu perfil. Nossa personagem se iniciara na carreira, aos 17 anos, no Teatro Experimental do Negro (TEN), em meado dos anos 1940/50! Eu acompanhava sua trajetória nas produções da teledramaturgia. Um presente: minha primeira matéria com a diva!!
Agendada a entrevista, parti para o Flamengo. Quase petrifiquei quando a diva me recepcionou na porta de seu apartamento. Não sabia como me mover diante de um dos meus ícones. Mas tinha que fazer o meu trabalho e depois, é claro, a tietaria discretamente, se é que podemos dizer isso…
Dona Ruth, muito doce, foi hiper maravilhosa. Abraçou-me com seus grandes e expressivos olhos. Expliquei-lhe que estava nervosa e insegura. Tranquila disse algo como: não tem problemas, querida. Tomemos um cafezinho: tudo dará certo. O que deseja saber?
Realmente foi lindo. Um bate-papo, com gravador e muita anotação. Só agradeço a todos e a todas, em especial, a esta mulher incrível.
Nascida em 12 de maio de 1921, viveu com a família em Porto do Marinho (MG) até os 9 anos de idade. Nesta ocasião, seu viria a falecer. Sua mãe vende o sítio e elas retornam para o Rio de Janeiro. As duas foram morar em uma vila de lavadeiras – ofício de sua mãe – e jardineiras, trabalhadores dos casarios em Copacabana.   
O palco: um sonho – Sua mãe gostava de cinema e a levava para a “sessão das moças”, no Cine Copacabana. Ali começou o sonho de um dia tornar-se uma atriz: coisa absurda para a época, já que não existiam atores e atrizes negros. Porém, para aquela menina, apesar de tentarem inculcar-lhe uma barreira, ela transformou essa dor em força motriz para impulsioná-la a realizar seu sonho. Como? Bem, ela foi à luta.
Através da “Revista Rio”, ficou sabendo da existência de um grupo de atores liderados por Abdias Nascimentoo “Teatro Experimental do Negro – TEN”. Essa foi sua primeira escola, onde ficou por cinco anos. Aluna aplicada, participou da encenação da peça “Imperador Jones” de Eugene O’Neill, no Teatro Municipal, em 8 de maio de 1945 – noite dos festejos pelo fim da Segunda Guerra Mundial. A jovem atriz encontrara o seu lugar neste plano: não mais parou de trabalhar, de fazer testes, de se lançar na carreira que definira seguir para todo o sempre.
Recebeu da Fundação Rockefeller uma bolsa de estudos e viajou para estudar teatro em Cleveland, nos Estados Unidos, estagiou no KaramuHouse. Estendeu seus estudos, por mais um período, na Academia Nacional de Teatro Americano, em Nova York. Ao regressar Ruth construiu uma sólida carreira no cinema, no teatro e na televisão, registrando mais de 20 filmes, dezenas de peças teatrais e 30 novelas de TV.
Premiações – Pelo seu desempenho no filme “Sinhá Moça” (1953), produzido pela Vera Cruz, ganhou a indicação ao prêmio Leão de Ouro, no Festival de Veneza, em 1954. Na disputa, estrelas do naipe de Katherine Hepburn, Michele Morgan e Lili Palmer, para quem Ruth perdera por dois pontos. O que lhe deu outro marco: primeira brasileira a ter o reconhecimento internacional.
O maior prêmio do cinema brasileiro veio em 2004. Ao lado de Léa Garcia, Ruth de Souza ganhou o Kikito de melhor atriz no Festival de Cinema de Gramado por sua atuação no filme “Filhas do vento”, de Joel Zito Araújo.
Por sua contribuição ao cenário artístico brasileiro, Dona Ruth recebera a Comenda do Grau de Oficial da Ordem do Rio Branco da República Federativa do Brasil.
Referências outras – Há muito a ser pesquisado sobre Ruth de Souza. Variadas referências, no Brasil e certamente, mundo afora. Apenas citarei algumas. Comecei pela minha estante. Nela, o livro “Damas Negras: sucesso, lutas, discriminação”, da jornalista Sandra Almada. Na publicação, ela e mais três amigas – Chica Xavier, Léa Garcia e Zezé Motta – falam dos altos e baixos de suas trajetórias atrás das cortinas. Outro excelente registro é o catálogo “Pérola Negra – Ruth de Souza”, organizado por Angélica Coutinho e Breno Lira Gomes, ricamente ilustrado com fotografias das várias facetas desta atriz, que também fora homenageada na primeira edição do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento, em 2011, produzido pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (Cojira-SJPMRJ).
Partida – Ruth de Souza fez sua passagem no domingo, 28, aos 98 anos, no mesmo dia em que ocorria a Marcha das Mulheres Negras, em Copacabana, pertinho de onde estava internada no hospital Copa D’Or. Certamente, a ativista nas artes acompanhara a Marcha de um jeito diferente. Do alto, subindo para Orun, a caminho de casa. Ela vibrou pela luta das irmãs vindas de todas as partes do Estado do Rio de Janeiro para, com orgulho e determinação, reivindicar direitos e denunciar o racismo, o machismo e outras formas de violência.
O velório foi realizado no Theatro Municipal, onde Ruth de Souza fora a primeira atroz negra a atuar. O corpo foi transferido para o Caju, onde aconteceu a cremação, em cerimônia reservada à família e amigos próximos.
Dona Ruth é uma referência para a cultura nacional; para gerações de atores e atrizes; para a luta da construção de espaço nas artes cênicas brasileiras para o/a ator/atriz negro/a; como, também, para o campo da comunicação, notadamente, jornalistas antirracistas.
Obrigada, Ruth de Souza, pelo que foi e sempre será: uma grande dama dos palcos, das militâncias e da vida!!!
(*) Sandra Martins, jornalista, mestra em História Comparada/UFRJ, e integrante da COJIRA-RIO.

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