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domingo, maio 5, 2024
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Glória Maria: nosso diamante do jornalismo foi para casa

O jornalismo perde um diamante lapidado em mais de cinco décadas: Glória Maria, que fará sua próxima matéria junto com os ancestrais. Ela faleceu hoje, quinta-feira, 2 de fevereiro, dia de Iemanjá que a guiou para a terra dos ancestres.

Ao anunciar o falecimento de uma de suas estrelas do jornalismo, a TV Globo, em nota, informou que Glória fora diagnosticada com câncer no pulmão, em 2019, “tratado com sucesso com imunoterapia. Sofreu metástase no cérebro, tratada em cirurgia, também com êxito inicialmente”. Porém, infelizmente, ela nos foi roubada, deixando duas filhas adolescentes, Maria (15 anos) e Laura (14 anos).

Determinação, curiosidade, empatia e muita competência, são alguns dos atributos desta jornalista que dedicou a vida para levar informação bem apurada, de qualidade, ao público em geral. E, com certeza, Glória Maria foi e será sempre referência para jornalistas negras/os, como para quaisquer pessoas que desejam quebrar padrões. Exemplo de (re)existência, se insurgia contra obstáculos impostos, retomava as análises dos fatos e desenvolvia novas estratégias e trilhas para conquistar seus objetivos. Como uma fênix ressurgia da dor, dos “nãos” já dados, e se impunha pela competência, criatividade e empatia.

Glória Maria Matta da Silva, carioca de Vila Isabel, aprendeu com os pais – Cosme Braga da Silva, alfaiate, e Edna Alves Matta, dona de casa – que a educação – formal ou não – abria portas para o desenvolvimento pessoal e coletivo. Aluna aplicada (e autodidata) na escola pública, aprendeu inglês, francês e latim. Fez a graduação em Comunicação Social, na PUC-Rio, e concomitantemente trabalhava como telefonista, na antiga Companha Telefônica Brasileira (CTB).

Iniciou sua carreira, ainda adolescente, com cerca de 16 anos, como estagiária de rádio escuta no Globo. Em 1971, como repórter cobriu o desabamento do Elevado Paulo de Frontin: “Quem me ensinou tudo, a segurar o microfone, a falar, foi o Orlando Moreira, o primeiro repórter cinematográfico com quem trabalhei”, relembrou em entrevista ao programa Memória Globo. No jornalismo da Globo, trabalhou no RJTV, Jornal Hoje, Jornal Nacional, Fantástico. Inúmeras coberturas em mais de 100 países, o que importa é que inscreveu seu nome na História do Jornalismo brasileiro.

Para os que nunca vivenciaram a produção de uma matéria ao vivo, é bacana trazer um caso registrado no ‘Memória Globo’. Glória Maria entrava ao vivo e a cores, no Jornal Nacional, novidade em 1977. Mostrava o trânsito na saída do Rio de Janeiro, em um fim de semana. A equipe preparada com seus equipamentos portáteis de geração de imagens. Tudo pronto para iniciar as tomadas, até que a lâmpada queimou. O foco foi para a repórter. “Eu estava dura, rígida, porque não podia errar. Era a primeira entrada ao vivo. Faltavam cinco, dez minutos, era o técnico que ficava com o fone para me dar o ‘vai’. Quando a lâmpada queimou, faltava um minuto para a entrada ao vivo. O jeito foi acender a luz da Veraneio (carro usado pela emissora nas reportagens).” Tanto o repórter cinematográfico e como a repórter tiveram que ficar de joelhos, com o farol no rosto de Glória Maria para a matéria entrar no ar. Muito (in)tenso!!!

Guardarei e guardaremos na nossa memória, as informações sobre eventos históricos que marcaram o mundo, como a Guerra das Malvinas (1982), entrevistas com personalidades como o cantor Freddie Mercury, no Rock In Rio (1985) e Michael Jackson (1996), políticos e militares que atuaram no período da ditadura matar (1964-1985). E o que não vou esquecer jamais é o medo que eu senti quando a vi subir o Himalaia, ou da minha musa pular de Bungee Jumping, entre outras estripulias fantásticas que muitos de nós, simples mortais, tinham vontade de fazer o mesmo, mas nunca tiveram condições e coragem: no meu caso, os dois.

Ela era assim, furava os bloqueios internos para aprender a lidar com o racismo cotidiano, e, em especial, quando estava trabalhando. Como ocorreu quando foi barrada por um gerente de um hotel, sendo tratada como uma prostituta. Ela acionou a polícia, e com a força do nome de seu patrão da Vênus Platinada, conseguiu chegar ao judiciário, avocando a Lei Afonso Arinos. Não deu prisão (nem a Lei Caó dava, o registro do Boletim de Ocorrência pendia para leve contravenção), mas foi a primeira jornalista de TV a exigir algum tipo de retratação. No que deu? Bem, segundo Glória Maria, o sujeito foi expulso do Brasil, mas havia se livrado da acusação pagando uma multa irrisória. Independente de o Estado brasileiro nos ver como nada e a jornalista não ser tão incisiva como muita gente queria, eu, que passei por redação comercial de impresso, sei como temos que nos equilibrar e mantermos a saúde mental e o emprego juntos, ao mesmo tempo que vai construindo possibilidades de abertura de espaço para outros profissionais retintos, como também produzir pautas que sejam menos impregnadas pela homogeneização do olhar único.

Minha referência profissional, junto com Anna Davies, certamente fez terapia para dar conta dos racismos que levam nossa autoestima para abaixo do meio-fio. Ela já havia falado sobre isso inúmeras vezes: ser negro no Brasil não é tarefa fácil. Eu fiz 20 anos de terapia, então o racismo não me incomoda mais, o preconceito é uma coisa que existe, eu sempre vou lutar contra, mas não me faz mais mal”. Fazer mal, faz; entretanto, aprendemos, em alguma medida, a lidar com isso. E, nesta repescagem de informações sobre minha musa, um dado que fiquei impactada: ela tirou licença não remunerada por dois anos para se dedicar a projetos pessoais, como as viagens para a Índia e a Nigéria, onde trabalhou como voluntária. Aprendemos muito, muito mesmo, quando somos voluntários, quando nos dedicamos à escuta.

Glória Maria seguiu para outro plano com o amparo de Yemanjá e, certamente, será bem recebida e suas filhas serão protegidas pela mãe, que sempre se fará presente em energia.

Sandra Martins, Jornalista, doutoranda no PPGCOM/UFF e integrante da Cojira-Rio/SJPMRJ

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